Aborto e estigma às margens da sociedade

Uma das pautas centrais do feminismo é o direito reprodutivo das mulheres. Tanto no cenário brasileiro quanto no mundial, as discussões sobre os impactos da descriminalização do aborto levantam reflexões sociais importantíssimas. Para auxiliar no esclarecimento de alguns pontos relevantes sobre esse tema, o Dicas de Mulher convidou a ginecologista e obstetra Helena Paro, e a advogada Maria Gabriela Brandino. Acompanhe a matéria!

O que é o aborto?

De acordo a advogada Maria Gabriela, o aborto é “o processo de interrupção de uma gestação que pode acontecer espontaneamente ou ser provocado”. Em ambos os casos, para um enfrentamento assertivo, é importante que a mulher receba “suporte material, emocional e econômico”.

No decorrer dos anos, a palavra aborto ganhou conotação negativa, virou tabu e foi criminalizada socialmente. Entretanto, Helena ressalta que a generalização do termo é um equívoco, pois existem outras formas de interromper uma gravidez, inclusive o aborto espontâneo.

Quais são os tipos de aborto?

Como esclarecido brevemente pela ginecologista no tópico anterior, nem sempre o aborto é provocado. Uma pesquisa – publicada em 2021 pela revista The Lancet – aponta que aproximadamente 44 abortos espontâneos ocorrem por minuto ao redor do mundo. Abaixo, Helena Paro explica os principais tipos:

  • Aborto espontâneo: “é a perda gestacional, a interrupção da gravidez sem uma intenção deliberada da pessoa gestante”. Esse tipo de aborto costuma ocorrer até a 22ª semana de gestação.
  • Óbito fetal: considerado uma forma de aborto espontâneo, “depois do primeiro trimestre de gestação, pode acontecer do feto ter uma parada de batimentos cardíacos” e entrar em óbito.
  • Aborto retido: “a mulher tem um processo de aborto espontâneo, mas o produto da concepção não é eliminado”. Nesse caso, às vezes, é necessário tratamento medicamentoso ou cirúrgico para a limpeza do útero.
  • Aborto induzido: motivo de muitas discussões a respeito dos direitos reprodutivos das mulheres, esse tipo de aborto “é a interrupção da gravidez de maneira intencional por método medicamentoso ou cirúrgico”.

Helena ressalta que o aborto espontâneo ocorre em cerca de 15% das gestações: “é simplesmente uma questão estatística”. Isso não diminui o luto e a dor da mãe, que precisa de acolhimento. Por outro lado, é necessário discutir sobre o aborto induzido e o direito das mulheres, pois a criminalização possui consequências devastadoras.

O aborto induzido na legislação brasileira

Desde o Código Penal de 1940, o aborto induzido tem um permissivo legal para ser realizado. De acordo com a advogada Maria Gabriela Brandino, “se não há outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resulta de estupro”, como está previsto no decreto-lei 2848/40, Art. 128, o aborto pode ser realizado legalmente.

Helena pontua uma circunstância recente, julgada em 2012 e amparada na Constituição Federal de 1988: em uma gestação com “malformação fetal incompatível com a vida depois do nascimento, a mulher também possui permissão legal para realizar o aborto no nosso país”.

Apesar dos permissivos acima, que marcam um avanço brasileiro em relação a outros países, o tema ainda precisa amadurecer muito. Mesmo em circunstâncias permitidas, gestantes encontram dificuldades para fazer valer seus direitos. Segundo Maria Gabriela, isso acontece porque implicações morais e políticas barram o avanço das discussões.

Fora dos permissivos legais, o aborto induzido, seja ele provocado/permitido pela gestante ou realizado sem a sua permissão, é crime prescrito nos artigos 124 e 125 do Código Penal, com punição que pode variar de 1 a 10 anos de prisão.

Cenário brasileiro: o aborto clandestino

Como explicado nos tópicos anteriores, existem três permissivas legais para o aborto induzido, são elas: risco de vida à gestante; gravidez ocasionada por um estupro; e malformação do feto incompatível com a vida. Contudo, isso não impede que haja muitos abortos realizados de forma clandestina.

egundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2008, aproximadamente 13% das mortes maternas ao redor do mundo ocorreram devido à realização de um aborto inseguro. Helena relata que “uma a cada cinco mulheres brasileiras já abortou clandestinamente”, ou seja, “os números variam de meio milhão a um milhão de abortos por ano”.

Em 2018, um relatório publicado pelo Ministério da Saúde (MS) revelou que, em uma década, 486 milhões de reais foram gastos para tratar complicações de abortos (em grande maioria, clandestinos). Além desse fator, é preciso considerar as características das gestantes que passam por procedimentos ilegais:

Corroborando com a fala da especialista, o boletim epidemiológico, publicado pelo MS em 2022, aponta que dos 774 óbitos por abortos – apenas os notificados ao Sistema de Informações sobre Mortalidade entre 2010 e 2021 – 60% foram de mulheres com menos de 30 anos, 62% de mulheres negras, 63% de solteiras e apenas 8% das mulheres possuíam 12 anos ou mais de escolaridade.

Apesar da ilegalidade, como aponta os dados, os procedimentos abortivos ocorrem no Brasil. A criminalização não impede a clandestinidade. Para Helena, a desigualdade social é o centro desse debate, pois “as mulheres que têm acesso aos métodos contraceptivos eficientes e à informação, bem como aquelas que buscam, mesmo na ilegalidade, um tratamento seguro” não compõem os percentuais acima dispostos.

Cenário mundial: o aborto eletivo

Muitas vezes tratado como questão de opinião pública e não de saúde, o aborto eletivo, isto é, respaldado por lei, enfrenta diferentes cenários ao redor do mundo. Enquanto alguns países possuem leis que legalizam o procedimento, outros proíbem ou dificultam o acesso. Os critérios perpassam por questões culturais, religiosas, direitos das mulheres, machismo estrutural, entre outras. Abaixo, conheça regulamentações favoráveis e desvaforáveis.

Países com regulamentação favoráveis ao aborto

Vários países possuem leis que regulamentam os procedimentos abortivos. Entretanto, quando o assunto é a descriminalização, o número reduz drasticamente. De acordo com Helena, no Canadá, por exemplo, o aborto não está no Código Penal desde 1973, porém é um dos poucos países com esse posicionamento.

Segundo o levantamento do Center Reproductive Rights, a Suécia legalizou o aborto em 1975. Na Colômbia, o procedimento é permitido a pedido da gestante até a 24ª semana de gravidez. Também contam com regulamentações favoráveis: Austrália, África do Sul, Espanha, Portugal, França, Itália e alguns estados dos Estados Unidos. Outros países, como Grã-Bretanha, Etiópia, Japão, Índia, Finlândia e Zâmbia, apesar de não permitirem o aborto a pedido da mulher, possuem fundamentos mais amplos.

O que a legalização ou a descriminalização muda em países favoráveis? A resposta está novamente nas estimativas. No geral, as taxas de mortalidade e de complicações são menores, além de reduzir o número de gravidez indesejada, aborto e infecção por doenças sexualmente transmissíveis. A partir da lei, políticas públicas são implementadas com o objetivo de conscientizar a população sobre planejamento familiar e saúde sexual.

Em 2018, a Dra. Rebecca Cook, em um discurso no Supremo Tribunal Federal, no Canadá, argumentou que “ocorreu uma diminuição de 30% da taxa de aborto entre adolescentes depois da descriminalização”. Além disso, a especialista afirmou que a descriminalização do aborto ocasionou um aumento do uso de contracepção.

Países com regulamentação desfavoráveis ao aborto

Na contramão dos favoráveis, Egito, Iraque e Filipinas estão entre os países que proíbem totalmente o aborto, mesmo em situações de estupro ou risco de vida para a mulher. No Brasil, Chile, Paraguai, Venezuela e Irã, o procedimento pode ser realizado para salvaguardar a vida da gestante.

No Equador, Peru, Paquistão, Marrocos e Bolívia, o aborto a pedido da mulher também não é legalizado, entretanto existem permissivos que consideram a saúde da gestante e do feto. A Bolívia, por exemplo, possui leis para casos de incesto e inclui explicitamente critérios de saúde mental, como mostra o relatório do Center Reproductive Rights.

A criminalização fomenta os procedimentos clandestinos. “Quando enfrentam barreiras para obter um aborto seguro, oportuno, geograficamente acessível, respeitoso e não discriminatório, muitas vezes, as pessoas com gravidez indesejada recorrem ao aborto inseguro”, afirmou a OMS em uma publicação em 2021. O mesmo texto alerta que 45% dos abortos induzidos em todo o mundo são realizados de forma insegura, sendo que 97% desses ocorrem em países em desenvolvimento.

Para a OMS, a falta de acesso aos procedimentos seguros e respeitosos não está de acordo com os direitos básicos e essenciais das mulheres, por exemplo: “o direito à vida; o direito ao mais alto padrão possível de saúde física e mental; o direito de se beneficiar do progresso científico e de sua realização; o direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e tempo dos filhos; e o direito de estar livre de tortura, tratamento e punição cruel, desumana e degradante”.

Quais são os argumentos de quem é contra o aborto induzido?

O aborto induzido é assunto desde a dona Maria até as cadeiras da universidade. Todo mundo tem uma opinião! Enquanto algumas organizações, como a Maré Verde – movimento feminista na América Latina -, estudam tanto os argumentos favoráveis quanto os desfavoráveis, outros movimentos, partidos políticos e pessoas batem o martelo do contra, argumentando que:

  • O aborto pode colocar a vida da pessoa gestante em risco e gerar complicações em outras gestações.
  • A vida da gestante não possui mais valor que a do feto. Ambas são iguais.
  • O feto tem o direito à vida, conforme a Declaração dos Direitos Humanos.
  • Segundo crenças religiosas, é pecado tirar uma vida.
  • Todo indivíduo merece proteção à vida desde a concepção.
  • A mulher pode se arrepender e ter um grande sofrimento emocional.
  • A descriminalização pode aumentar a realização do aborto e diminuir a preocupação com a prevenção.

A subjetividade humana faz cada pessoa ter a sua própria visão de mundo. No entanto, Helena ressalta que “o aborto não é uma questão de opinião pública”. O procedimento deve ser compreendido como “um cuidado em saúde, um dos tratamentos que existe dentro da ginecologia/obstetrícia”.

5 pontos negativos da não liberação do aborto eletivo no Brasil

Quem é contra a legalização do aborto realmente procurou entender o cenário? O que acontece no clandestino, muitas vezes, fica por lá. Quando a notícia vaza, há a culpabilização da mulher, desconsiderando aspectos sociais e econômicos. Helena e Maria Gabriela explicam alguns fatores acentuados pela criminalização. Acompanhe:

1. Altas taxas de mortalidade e complicações

De acordo com a advogada, Maria Gabriela, “a cada minuto, uma mulher faz um aborto no Brasil”. Embora a regulamentação nacional permita a realização do procedimento em 3 situações, a grande maioria recorre aos métodos inseguros e sem acompanhamento médico qualificado. Como consequência, “as hemorragias, os transtornos hipertensivos, as infecções e as complicações do aborto inseguro contribuem para mais da metade dos óbitos obstétricos”, como disposto no Boletim Epidemiológico de 2022.

A OMS esclarece que “a proporção de abortos inseguros é significativamente maior em países com leis de aborto altamente restritivas do que em países com leis menos restritivas”, ou seja, a descriminalização poderia diminuir diretamente, não só a taxa de mortalidade por conta do aborto induzido, mas também as complicações na saúde das mulheres.

2. Maternidade compulsória

Maternidade compulsória diz respeito às práticas políticas, culturais e sociais que fomentam a idealização de que toda mulher precisa ser mãe. Segundo Helena, mesmo com os permissivos legais, os casos de fetos com questões de saúde incompatíveis com a vida passa por um processo jurídico para receber ou não a autorização à realização do aborto. Maria Gabriela exemplifica com outro caso: em 2022, uma menina de 10 anos passou por audiências onde “os representantes do estado impuseram por meio dos discursos a maternidade compulsória”.

3. Gastos aos sistema de saúde

Com as altas taxas de mortalidade e complicações devido aos procedimentos abortivos realizados de forma insegura, o sistema de saúde de países desfavoráveis ao tratamento tem gastos anuais milionários, que poderiam ser investidos de outra maneira. Segundo Helena, o Brasil, por exemplo, “tem uma média de duzentas mil internações por aborto incompleto, que custa mais de 40 milhões de reais ao SUS”.

Em dados gerais, estimativas da OMS apontam que essas complicações chegam a custar cerca de 553 milhões de dólares por ano aos países em desenvolvimento. Diante disso, afirmam que “os países e os sistemas de saúde poderiam fazer economias monetárias substanciais ao fornecer maior acesso à contracepção moderna e ao aborto induzido de qualidade”.

4. Realização de procedimentos arriscados e perigosos

A criminalização não impede a realização do aborto. Contudo, como já explicado pelas especialistas, por não encontrarem clínicas qualificadas e, até mesmo, pela falta de acesso à informação, muitas mulheres recorrem aos métodos e técnicas perigosos, que podem causar hemorragia, perfuração uterina e graves infecções.

De acordo com dados da OMS, em países desenvolvidos, para cada 100 mil procedimentos de aborto inseguro, ocorrem cerca de 30 mortes maternas, já em “regiões em desenvolvimento, esse número sobe para 220 mortes por 100 mil abortos inseguros”.

5. Estigma moral

Outro fator a ser considerado com a não liberação do aborto induzido é o estigma moral envolto ao assunto. Apesar das circunstâncias que permitem legalmente a realização do procedimento, ainda existem complicações burocráticas para que ele seja de fato realizado.

Interpretado como crime, o procedimento, que deveria ser visto como um tratamento de saúde, é cercado por preconceitos morais. A respeito disso, a ginecologista pontua: “o aborto pode ser polêmico individualmente, mas não deve ser uma polêmica no debate público e também não é uma questão de opinião”, uma vez que o direito à saúde é um preceito fundamental descrito no Art. 196 da Constituição Federal.

A médica ressalta que, além da lei e da descriminalização do aborto, é preciso pensar em políticas públicas para a população, incluindo educação sexual e programa de planejamento reprodutivo. A informação, conscientização e amparo, como aponta os dados de países que legalizaram o aborto, são os principais meios para erradicar os problemas ocasionados pelos procedimentos clandestinos.


Karyne Santiago
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